fragmentos do 6º andar
“Eu não tinha ficado para conhecer a vista
das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas
mas não cheguei a levantar as persianas.”
Rui Pires Cabral
eu nunca te disse
que
não vi a
vista
das tuas janelas.
não nesse dia,
nem no outro.
via,
é certo,
a sombra do prédio em frente
atravessando-te o corpo
às sete em ponto —
ficava pelo dentro.
pelo calor dos lençóis mal esticados,
a vibração tépida dos corpos,
o imediatismo do tacto
no ângulo da chama.
não via a paisagem das tuas janelas.
via o ritual do café.
a forma como rodavas a colher:
a medir o pulso do dia.
sempre sete vezes.
contava-as.
sete voltas.
nunca oito.
comovia-me a disciplina
da tua fome.
o modo como deixavas
a torrada arrefecer.
como cortavas a manteiga
em cubos perfeitos.
como rejeitavas as pontas.
a luz da manhã
entrava
e dividia a mesa ao meio.
absorvia-me na equação
da mancha de azeite no fogão.
a álgebra
das migalhas
em cima da mesa.
o breve campo,
entre o teu ombro e o meu,
na probabilidade de nos tocarmos
ao passar
no corredor.
interessava-me mais o lento movimento do pó,
as partículas suspensas,
o ouro cego do dia em parto —
a janela, um rumor de vidro,
um eco em que nunca chegámos a caber.
pois tudo o que sabíamos um do outro,
e do mundo,
cabia
no anel de açucar
do meu café.
atenta aos pequenos sinais da queda:
a tua palma
adormecida
sobre os nós dos meus dedos,
um olhar suspenso,
o fecho relutante
do casaco
na partida quieta
e ansiosa.
não soubemos ler
a covardia
desse abrigo breve —
ensaiámos a normalidade
para que os delírios daquelas noites breves —
balcões de bares, casas de amigos,
in vino oblivio —
não se insinuassem no expediente:
não se transformassem em raízes,
miúdas e obstinadas,
ganhando corpo no silêncio mineral das coisas.
forçando caminho,
quase imperceptíveis,
pelas fendas do granito.
que bonita
(e cruel)
essa paciência do campo:
o verde que não se resigna
e se entranha no asfalto,
fazendo florir a pedra morta.
estragar — até isso nos faltou.
no parapeito da janela por onde nunca espreitei,
um vaso resistia
frio, tenso,
à pressa das flores,
imitando a nossa seca.
às vezes conténs o desabrochar —
o pólen,
o zumbido abafado das abelhas,
o apodrecer.
nunca vi
da tua janela
a rua
onde disseste
sobe
(como subia,
obediente,
a tua saia)
e com ela
a evidência
de que a rua,
morna, húmida,
já não nos cabia,
e o corpo
latia por paredes
que respirassem o estrondo
que a tua boca guardou
para o 6º andar.
vi, sim,
o mapa das tuas mãos na toalha,
a geografia das nódoas,
a topografia das pregas —
o medo:
clique,
surdo,
a porta a fechar-se,
sem chave.
um receio
que aperta
como eu apertei
a pulsação imaculada
das tuas ancas
no instante em que
a luz da tua janela
rasgou a vertigem dos teus olhos.
antes de nos rendermos
à carne fria
da nossa ruína.
a disciplina das torradas
ausente do quarto.
migalhas de botas pelo chão —
botas com lastro,
com memória,
comentando entre si
o desamparo
do teu pulso cativo
cercado entre os meus dedos,
enquanto a tua anca —
sete voltas.
nunca oito.
queria ter-me retido o bastante
para um almoço,
ver se a mesma disciplina —
se deixavas a parte mais tostada para o fim
ou ordenavas as cascas da ameijoa
em filas resignadas.
se dispunhas os guardanapos,
como quem dobra o pano do luto,
como te dispuseste de nós:
eu cá, tu lá,
depositados
cada um no seu canto.
as persianas da tua janela, corridas —
e dentro,
o dia a insistir.
que fôlego guardavam
as portas entreabertas do corredor?
a quem pertenciam os retratos,
rostos que não distinguia
e que me fitavam, mudos,
despertos
pelo sismo do aparador contra a carne,
a recusa breve,
logo o despotismo ofegante dos meus polegares
intimando a tua blusa:
sobe.
hoje, da rua
olho para cima.
todas as janelas do prédio me devolvem o mesmo céu fosco,
todas vestindo a mesma luz cansada,
nas pálpebras de vidro,
de quem espera pouco e recebe menos.
o vaso teima em florir
sem testemunhas.
ficou o ar, suspenso
a meio das cortinas.
ficou a espera —
e a vista
onde já nada regressa.


❤